AS COVAS DA DONA FILHINHA - BVIW

A cortina estava entreaberta, por detrás dela Dona Filhinha observava vidas passando. O estilo de vida que não era mais seu. Há muito deixara de fazer o que via as pessoas praticando. As pernas ainda funcionavam, embora não lhe permitissem mais de vinte passos sem reclamar da queimação na sola dos pés. A filha aproximou-se para o beijo de despedida, e avisou que a cuidadora havia chegado. E se foi para o escritório.

- Bom dia, Dona Filhinha! – Cumprimentou a entusiasmada Wanda . A guardiã de anos, que conhecia todos os gostos e manias da senhorinha.

- Bom dia, querida! Veio mais cedo.

- Sim! E me conta como está o movimento na rua hoje. Seu Genésio já fez a serenata para a esposa?

- Hoje, não. Está ruim da garganta. Pudera! Ontem abusou da voz. O bobo achou que era Agnaldo Rayol cantando “Fascinação”. Um desastre só!

As duas mulheres caíram na risada. E por um instante Dona Filhinha parecia ser de novo uma garotinha marota. A alegria rejuvenesce. É terapêutica. Cessado o riso, o olhar da anciã retornou para a fresta da janela de onde via, discretamente, crianças tomando sorvete, colegas caminhando para a escola, pais apressados indo trabalhar. As feições da idosa voltaram aparentar a idade real. Por um momento ela silenciou, em seguida disse:

- Há tantas covas em mim... Nelas enterrei minhas frustrações, alguns sonhos interrompidos, as dores e as decepções, o amor que não vivi.  

- Nossa! Nunca imaginei que tivesse todo esse peso guardado. Quer falar sobre isso?

- Não, minha querida. Esse assunto é melhor nem desenterrar. A vida precisa seguir mesmo havendo buracos profundos. A gente salta sobre eles, ignora, sabe? Ou tapa com horas felizes. Os infortúnios deixo sepultados no âmago da memória.

Tema proposto pelo BVIW   -  Aquela fresta na janela

(BVIW - *BECOMING VERY IMPORTANTE WRITER/ "Tornando-se um escritor muito importante").