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OS PEDACINHOS DE LIDIANE...
Havia um certo ar de mistério. Parecia que escondia algo. Bem, era essa a impressão que tinha quando passava por ela. Constantemente a via segurando um caderninho, uma caneta com coração, dessas decoradas que meninas adoram. No ombro, uma bolsa pendurada, e muito suspense a tiracolo! Devia ter, no máximo, seis anos.
Durante dias imaginei as mais absurdas histórias sobre o suposto segredo que carregava aquela garotinha de olhar que sabe tudo e muito mais do que imagino. Aqueles olhos graúdos carregavam histórias que eu desejava conhecer. Algo nela me atraía com peculiar fascínio. Uma doçura, uma ingênua intrepidez. Vários adjetivos notei naquela menina. O desejo de ser pai talvez tenha sido o motivo maior do meu interesse pela criança adorável.
Era certo encontrá-la em frente a floricultura Flores da Alma no centro da cidade, por volta da dez da manhã. Parecia britânica pela pontualidade. Deduzi, seu estudo deveria ser vespertino, pois nunca lhe encontrei uniformizada nesse horário. Precisava me aproximar dela e descobrir o que fazia diariamente ali. Que ritual seria? Apesar de querer conhecê-la mais de perto, era preciso me acautelar, pois é preciso cuidado ao se aproximar de uma criança, afinal sou estranho para ela.
Na manhã seguinte, enquanto caminhava para o consultório, avistei a menininha como de costume. Resoluto a descobrir o que fazia ali, como “Sherlock Holmes”, com o jornal em mãos, atravessei a avenida indo em sua direção. Entrei na floricultura, despistei perguntando sobre uma mudas de lichia que realmente iria adquirir. Disse para a dona do recinto que desejava plantar várias mudas da exótica fruta oriental. Depois de algum tempo conversando com a simpática senhora que falou minuciosamente sobre o cultivo da lichia, em dado momento, se volta para a entrada da floricultura, pede licença e chama com uma voz doce:
- Lidiane, venha minha querida, agora entre.
Um dos mistérios a boa senhora havia feito as honras de esclarecer. Daí a razão da menina estar sempre ali. Foi o suficiente para me satisfazer a curiosidade de quase um mês. Disfarçando o interesse, disse:
- Ah, a linda menina que todos os dias vejo quando vou para o consultório é sua neta!
A senhora sorriu, respondendo em seguida:
- Sim. Na verdade não é uma neta, é um anjo que Deus enviou para nossa família. – Falou a senhora com ternura no olhar. E continuou. - Todos os dias precisa ficar comigo pela manhã. Nunca reclama. Seja frio ou calor. É mesmo um anjo.
Nisso, entre as mudas de flores e árvores frutíferas vinha se aproximando-se a neta.
- Bom dia! – Cumprimentou os fregueses que estavam no interior do recinto.
Ela parou sorrindo ao meu lado. Acariciei-lhe os cabelos lhe dizendo que seus dentes eram lindos. Aproveitei e perguntei se fazia uma boa escovação após ingerir alimentos:
-Você é dentista? – Quis saber a menina.
- Isso mesmo. Você é uma boa observadora! – Sorri admirando sua esperteza.
- Eu escovo muito bem. Nem sempre com vontade, mas porque minha mãe me obriga para que eu não tenha cáries. Ah, eu uso fio dental e limpador de língua todos dos dias, viu? E o que você falou sobre observar. Observar é o que eu mais faço na vida! – Respondeu Lidiane.
- Sua mãe faz muito bem em cuidar direitinho de você e dos seus lindos dentes. Mas, me diga o que tem observado ultimamente? – O dentista aos poucos ia desvendando os pequenos segredos.
- As pessoas. Mais os homens. Os pais. Eu estou juntando pedacinhos... – Disse um pouco desconcertada, interrompendo a frase.
Segurando-me pelo braço, a avó me convida para ver as mudas. Na verdade foi para me dizer algo revelador:
- Depois que o pai morreu em acidente de carro, há alguns meses, ela fica ali na frente anotando, anotando... Pobrezinha, foi a forma encontrada para aliviar as dores da saudade, da grande perda.
Comovido com o que acabara de ouvir, aumentou meu carinho e o desejo de conhecer o que escrevia aquela menininha. Dirigi-me até ela e disse:
- O que você está juntando nessa bolsinha, menina bonita?
- Por que quer saber? Sabia que curiosidade não é atitude de pessoa educada? – Disse com ar sério.
Achei graça daquela resposta madura e entrei em sua cabecinha para que depositasse um pouco de sua confiança em mim:
- Vou contar um segredo. Eu só cresci por fora, por dentro eu tenho seis anos de idade, por isso sou curioso igual gato de rua!
Foi a vez da menina sorrir. Pareceu surtir efeito a bobagem que havia dito. Lidiane pôs a mãozinha dentro da bolsa retirando o caderninho. Ia entregando-me o caderno quando, de repente, recolheu o braço. Olhou-me bem anotando qualquer coisa no fim das suas escritas, e foi dizendo:
- Moço dentista, eu anotei tudo que um homem precisa para ser um homem ideal, um pai perfeito. Pode ler!
Surpreso pela rápida aceitação, pus meus olhos sobre o que parecia ser uma lista. Aos seis anos, fiquei impressionado com bonita a caligrafia cursiva, onde pude ler:
"Para ser um homem perfeito, bom pai é preciso: ter bom coração, não zangar se o sorvete escorrer pelos braços. Gritar algumas vezes. Beber refrigerante na praça e não beliscar se, sem querer, o filho arrotar. Abraçar sem ter motivos. Ficar de cara feia. Falar e ouvir com calma. Não precisa ser um homem bonito por fora, mas o coração deve ser lindo porque se um dia a cara de fora estiver feia de zangada, o coração bondoso devolverá o bonito no rosto. Tem que falar a verdade sempre. Pode chorar quando sentir vontade mesmo na frente dos filhos. Acho que está bom assim os pedacinhos dos homens e pais que eu observei aqui."
Fiquei impressionado com o que ia lendo. Alguma coisa apertava meu coração, parecia que desabaria em choro. Não esperava mesmo encontrar aquela lista de posse de tão pequena criança. O que me surpreendeu mais ainda foi ler algo que foi escrito por último. Foi quando minha respiração acelerou. Então li: deve continuar pequeno por dentro como um menino que esqueceu de crescer. A menininha se referia a mim na conclusão das suas escolhas, naquele ajuntamento dos seus pedacinhos de um pai perfeito.
Discordei de alguns itens daquela lista. Gritar algumas vezes? Fazer cara feia? Olhei de volta para a garotinha e questionei:
- Mas, Lidiane, aqui tem coisas que não fazem parte de um pai perfeito. Cara feia, gritar algumas vezes. Brigar, zangar não faz de ninguém uma pessoa perfeita...
Podem não acreditar, a menina me olhou dos pés a cabeça, como se eu fosse o maior imbecil, um grande asno que havia visto em seus pequenos anos de vida, e filosofou:
- Seu dentista, quem disse que homem e pai perfeito não têm dias de defeito? Só porque uma pessoa briga ela não deixa de ser maravilhosa. Só porque alguém grita ou diz coisas não tão belas que deixa de ser bom, não acha?
Maravilhado estava e mais maravilhado fiquei com a menina. Sim, como havia dito no início, tive a sensação que ela era bem mais sabida que eu. E era! Eu tinha o conhecimento, era homem estudado, formado, aprendi muitas coisas com ajuda dos mestres e livros enquanto a menina retinha sabedoria. Aprendera com vida, de certo de acompanhar a avó, e com assuas ingênuas observações. O que faz um homem perfeito não são suas qualidades físicas ou ser desprovido de fraquezas. O importante são as atitudes tomadas no momento adequado. Seja se valer da cara feia ou de um grito, tudo feito oportunamente, tendo um propósito não diminui o caráter de um grande homem.
Essa sabedoria da menina levaria comigo. Antes de sair da floricultura com as mudas da lichia, diante da avó, perguntei para sua esperta neta:
- Diz uma coisa, a sua mãe é tão linda e sabida feito você?
Fiquei mesmo tentado em lhe conhecer, mas esse é um assunto para uma outra história...