DEBAIXO DO MAR, O INFERNO! - Da Série: ACONTECEU COMIGO!
AGRADEÇO A GENTILEZA DO NAVEGADOR AMYR KLINK POR TER AUTORIZADO A CITAR A ILHA DA BEXIGA, DE SUA PROPRIEDADE, PARA COMPOR ESTE MEU CONTO. UM GRANDE HOMEM TEM NOBRES GESTOS.
“Existem mais mistérios entre o céu e a terra do que pressupõe nossa vã filosofia.”
(William Shakespeare)
O pescador Juá, depois que saiu para pescar em sua companheira jangada, retornou para casa mudo. A família e amigos nunca puderam entender o que levou aquele rapaz de vinte e dois anos, moreno, forte, galante, perder a voz misteriosamente. Nem a medicina com toda tecnologia avançada desvendou a causa da afonia de Juá.
Bateria de exames realizada, mas nada de anormal foi constatado. Então, por que ele não falava?
-Alguma maldição ele trouxe do mar... – suspeitou a septuagenária dona Almira, carinhosamente chamada pelos caiçaras de “Darmira”.
- O que isso, vó? Ele deve ter bebido água do mar... Com o som quente na cabeça, bagunçou o cérebro e ficou meio “lelé da cuca”. – Explicou Didico.
- Não brinque, meu filho, isso é assunto sério, mistérios do mar... – concluiu Darmira.
Os caiçaras vivem na ilha da Bexiga, situada no litoral Sul do estado do Rio de Janeiro, na altura da baía de Paraty. No início do século XX, as vítimas de varíola, eram mantidas em quarentena nessa ilha. E eram sepultadas ali mesmo quando não sobrevivam à doença. A varíola naquela época era chamada de bexigas. Daí surgiu o nome da ilha.
Muitas histórias surgiram depois das mortes naquela ilha por conta da varíola. Vou relatar agora uma que meu filho viveu...
***
O pessoal da repartição bem que tentou tirar da cabeça de Thayla aquela idéia de entrevistar o rapaz que perdeu a voz, aquele da ilha da Bexiga. O chefe da Redação da rede Sideral achava desperdício deslocar uma jornalista tão conceituada e um ótimo fotógrafo para uma historinha sem grandes interesses. Para o chefe da Redação, o Sólis, só interessava manchetes que lhe rendessem bons lucros. Thayla tinha grande poder de persuasão. Com seu jeitinho todo especial, com olhar doce e sorriso largo, conseguiu convencer Solis a liberá-la para entrevistar o tal pescador.
Gravador, bloquinhos de anotações, notebook, pendrive e fotógrafo Ed a tiracolo, lá foi ela satisfeita para o litoral do Rio.
***
Thayla e Ed saíram do Centro do Rio, de ônibus oito e trinta e chegaram a Paraty meio-dia e meio.
- Thayla, minha barriga tá colada nas costas, tô varado de fome! Vamos procurar um restaurante bom para almoçar.
- Restaurante não porque a grana que o Jornal disponibilizou é uma merreca, vamos ter que economizar para a pousada e a escuna... Mas, antes de vir, pesquisei uns lugares bacanas com a Rute que vem sempre aqui... Vamos para a Cantina do André que serve uma comidinha caseira. Fica aqui pertinho, na Praia do Pontal.
- Então vamos nessa que comer é que me interessa! – Brincou Ed.
***
Saciada fome, a jornalista e o fotógrafo seguem para a ilha da Bexiga...
Chegando lá, vão falar com a família do Juá para pedir autorização para entrevista. Gente modesta, cordial, aceita sem questionar. Aliás, ficam muito contentes por saber que aquele filho querido será manchete de jornal.
- Boa tarde, dona Una. Poderia responder algumas perguntas? – Indagou Thayla.
- Posso sim, moça, se eu souber responder...
- Obrigada... Então me diga o que aconteceu desde o dia em que o Juá voltou do mar sem voz...
- Já era tarde, quer dizer... Ele nunca voltava quando já estava escurecendo, sempre via quando o sol quase tocava a água... E naquele dia, estava breu quando ele chegou. Até os outros pescadores queriam ir atrás dele, mas como ventava muito, ficaram receosos...
- Ele sempre pescava sozinho? – Interrompeu Thayla.
- Sim, sempre foi o pescador solitário. Ele amava ir sozinho, dizia que era o Rei do Mar. Brincava que só existiam dois reis dos reinos azuis: Ele, Rei no Mar azul e o Sol Rei do Céu azul...
- Nossa... Bonito isso! Reis dos reinos azuis... Tem lirismo. – Admirou Thayla. – Mas, continue, por favor!
- Então, quando Juá voltou, não tinha o mesmo olhar. Seus olhos mostravam sofrimento, medo, angústia... Seus olhos estavam esbugalhados, sem brilho e parecia que não havia alma nele, que ele tinha deixado a alma perdida no mar... Pois ele saltou do barco, correu para o quarto e ficou lá coberto da cabeça aos pés em pleno calor. Passou a noite em claro daquele jeito estranho... Ficou por longo tempo segurando a minha mão, chegando a me machucar de tanto que ele me apertava. Parecia em transe...
- Sim, algo de muito grave aconteceu em alto mar... – completou a avó Darmira.
- Oi... Boa tarde! Quem é a senhora? – Quis saber Thayla.
- Sou a avó do Juá, Almira às suas ordens. Vejo coisas, minha filha...
- Que tipo de coisas? A senhora é vidente? – Quis saber Tayla.
- É tipo isso, tenho meus sonhos, minhas visões que me mostram os mistérios da vida. – Confirmou Darmira.
- Então... Será que agora posso ver o Juá, falar com ele para entrevistá-lo?
- Sim, menina... – Afirmou a mãe do rapaz. E foi conduzindo Thayla até o quarto do Juá.
Quando Thayla entrou no quarto, surpreendeu-se com a beleza daquele rapaz. Moreno, olhos azuis como o mar, cabelos castanhos queimados pelo sol. Uma beleza exótica e muito atraente aos olhos da jornalista. Habituada a entrevistar todo tipo de pessoa, sentiu a pele ruborizar diante daquele belo rapaz descamisado. Para que ele não percebesse seu olhar admirado, foi logo falando com um simpático sorriso:
- Quer dizer que você é o famoso Juá da ilha da Bexiga?
Juá também se afeiçoou com a aparência bonita e meiga da jovem jornalista. E balançou a cabeça afirmando ser sim o tal de Juá. Fez sinal para que a mãe os deixasse a sós. A jornalista e o fotógrafo permaneceram no quarto com ele.
- Deixa eu me apresentar... Sou a Jornalista Thayla da rede de tv Sideral. Eu me formei há um ano, mas já ralei muito como repórter de rua. – Disse rindo. – E continuou. – E esse é o Ed, meu fiel escudeiro e fotógrafo. Nós crescemos juntos, estudamos no mesmo colégio, na mesma sala, depois a vida nos separou e só ano passado nos reencontramos e não desgrudamos mais, não é Ed?
- Isso tudo e mais ainda! – Confirmou o alegre fotógrafo. Disse logo tirando umas fotos do Juá e da Thayla.
- Bem, feitas as apresentações, posso começar a entrevista, Juá? – Perguntou a jornalista.
Acenando com a cabeça, fez Juá consentindo. Thayla começa a entrevista...
- Naquela manhã quando saiu para pescar e em alto mar, sua mãe nos contou que você disse ao sair: “Estou com pressentimento, mãe... A senhora promete que não até a cidade hoje?” - O que você sentiu ou sonhou?
Thayla se surpreende com o que aconteceu! Juá começa a falar:
- Tive uma visão... – A voz do Juá saiu meio esganiçada, destoada, decorrente dos três meses de completa mudez.
- Nossa, Juá! Que bom que recuperou a voz ou... Que resolveu falar! – Thayla estava radiante em ouvir aquele belo pescador voltar a falar. Chegou a chorar de emoção. Estava duplamente feliz. Pelo rapaz que não havia perdido a voz definitivamente e por ter a oportunidade de desvendar todo aquele mistério...
- Sim, eu mesmo acreditei que não teria cura para minha afonia, pois os médicos não diagnosticaram nenhuma anomalia física em mim.
- Pô, cara! Até eu fiquei emocionado... – Confessou o fotógrafo Ed que disfarçando foi secando uma lágrima que vazava pelo rosto.
- Obrigado. Acho que a simpatia de vocês dois despertou em mim confiança e me senti seguro, pela primeira vez e tive vontade de pôr tudo para fora.
- Então, vamos lá! Fique tranquilo e nos conte tudinho, sem fugir de nenhum detalhe, ok?
- Ok. Bem, naquele dia, tive uma visão que todos os moradores da ilha haviam sido mortos de uma forma horrível... – Juá deu uma pausa, Thayla temeu que ele não continuasse. Mas, ele prosseguiu. – Haviam sido extirpados! Vi órgãos espalhados por toda ilha, nas árvores, nas embarcações...
- Ficou impressionado, não é Juá? – Thayla pôs sua mão sobre a do Juá para que ele sentisse confortado com a sua presença.
Juá pareceu gostar daquele toque, ficou mirando por uns instantes da bela jornalista. Percebendo o olhar do fotógrafo, disfarçou e voltou a falar:
- Naquela manhã, o dia estava deslumbrantemente lindo. O Sol brilhava e o céu trazia o belo azul de inverno, apesar de pleno verão. Perfeito para a pescaria. Já havia conferido as condições do tempo, do vento. Tudo concorria para um dia excelente para navegar. Só que a certa altura, minha jangada começou a balançar com fúria, embora as águas do mar estivessem calmas. Apesar de estranhar aquele movimento, imaginei serem algas agarradas ao casco da jangada, mergulhei para verificar...
Ao descer mais fundo, vi a coisa mais apavorante da face da Terra. Uma figura com olhos esbugalhados, com chifres, com pés de bode, boca humana com dentes caninos, mãos enormes com garras. Naquela hora quase morri! O susto foi tanto que respirei dentro d’água. Senti a dor da água salgada nos pulmões e aquela criatura horrenda me segurou e disse claramente:
“-Falta pouco tempo para libertar o pior dos seres, o Mestre das Trevas que foi aprisionado pelo Seu Mestre, o Senhor criador de todas as coisas, o seu Deus! Mas, agora Ele está perdendo força e terreno, quase ninguém mais crê nEle, o mundo já não confia tanto nas promessas do Pai nem do Filho!!!”
- Aquela voz aguda, ensurdecedora quando me enlouqueceu! – Disse Juá alucinado!
- Calma, Juá, que estou toda arrepiada! E olha que sou cética quanto a fantasmas e coisas do gênero! – Disse Thayla assustada.
-É, Thayla, eu também não acreditava nem temia nada disso até aquele momento. Ele ia respondendo minhas respostas sem que eu fizesse sequer pergunta, parecia que lia meus pensamentos, a criatura continuou:
“-O seu Javé, o seu Deus aprisionou-nos debaixo do mar porque a água é vida, é sagrada! A água é parte d’Ele, tanto que revela na Sagrada Escritura como criou o fogo, a Terra e tudo mais... A água não, a água ele não revela porque a água já existia assim como ele!!! Ele é mesmo Superior! Mas, agora estamos nos fortalecendo com a descrença da nele da humanidade que Ele próprio criou... – Disse com ironia a criatura.
- Nossa, que coisa estranha! – Assustou-se Ed.
-Olha... Sabe que faz até sentido pela lado da História? Realmente não há relato da criação das águas... – Thayla estava pensativa com tal possibilidade.
- Depois... – Continou Juá. – A criatura falou que se alimentava de humanos, das almas delas e que a cada alma apreendida, o Mestre das Trevas ia se fortalecendo. E foi contando como consegui vidas e almas humanas pelo mundo: no naufrágio de navios antigos, no Titanic, no Bateau-mouche, entre tantos outros...
Juá deu uma parada, ficou naquele estado catatônico. Thayla olhou para Ed preocupada e tocou levemente o ombro do rapaz para que saísse daquele transe.
- O quê? Hã!? Desculpa, é que cada vez que me recordo, fico em estado de choque!
Por fim, olhou-me nos meus olhos bem de perto que pude sentir o odor fétido vindo dele:
- Você deveria se devorado, ser inferior... Mas, o Mestre deixa que viva para que saibam que nosso reino não tarda a comandar outra vez a Terra. Deu um estridente ruído e adentrou para as profundezas do mar. Fui tomada de assombro que nem sei como vim parar de volta aqui na ilha...
- Puxa! Se me contassem isso, acreditaria ser mesmo uma história de terror! – Falou Thayla. – Acho que vamos bater o recorde de vendas no Jornal. O povo adora histórias desse enredo...
- Mas, não é história... É fato! – Bradou Juá.
- Desculpa... Não quis ofender você. É que a maioria das pessoas não acreditarão em nada do que me falou. Quero dizer, vão achar que é sensacionalismo do Jornal para vender mais.
- Então por que veio me entrevistar? Para que eu sirva de chacota? – Alterou-se Juá.
- Não! Não mesmo. Não sou cruel assim! Eu vou publicar seu relato porque acredito no que disse...
- Mesmo? Não fala só para desfazer o mal feito? – Disse Juá mais tranquilo.
- Sim, Juá... – Confirmou Thayla. – Juá... Tenho uma curiosidade, posso fazer uma pergunta?
- Pode, sim jornalista.
- Bem, você se expressa muito bem para um caiçara pescador. Como Pode isso?
Juá acha graça e responde:
- Há um projeto aqui no ilha, a gente aprende a navegar mas, antes tem que aprender a ler, escrever, se dá bem nos estudos. Sou pescador por opção. Digo, por paixão. Leio muito, acompanho as notícias pelos jornais quando vou até a cidade mais próxima, procuro andar informado.
- Muito bom! Parabéns, Juá! Fico feliz por você e por tê-lo entrevistado. Assim conheci mais um pouco dos habitantes da ilha.
- Mas, você não tem medo de continuar a morar na ilha da Bexiga, Juá? – Quis saber o fotógrafo Ed.
- Não, Deus é Poderoso e sábio! Logo ele arrumou um guardião para a ilha. Um benfeitor que protege a ilha da Bexiga de todo os perigos. O navegador Amyr Klink cuida da gente e com ele junto a nós, mal nenhum há de nos atingir. Nem carnal, nem espiritual, pois o seu Amyr é um iluminado!
- É mesmo... Do Amyr Klink não podemos esperar menos do que a sua grande nobreza. Até breve, Juá! Outro dia volto para visitar você e fazer uma entrevista com o guardião da ilha.
- Volte sempre que será um prazer!
Caro leitor, cuidado! Quando estiver na praia ou pescando, não se afaste tanto para o alto mar...
Nota:
Hoje existe na ilha da Bexiga, o projeto “Escola do Mar”, mantido pelo proprietário, o navegador Amyr Klink. Esse projeto beneficia crianças carentes da região, introduzindo-as na prática de velejar.
Próximo ao cais de Paraty, de propriedade particular de Amyr Klink, pode-se ver o veleiro Paratii, utilizado pelo navegador em sua expedição à Antártida.
Djanira Luz
Enviado por Djanira Luz em 03/01/2009
Alterado em 02/03/2009